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Radar da Participação #4 - Participação social sob ataque e a luta dos Povos e Comunidades Tradicionais

O Decreto Nº 9.759 de 2019, editado no governo Bolsonaro descontrói o processo de participação dos Povos e Comunidades Tradicionais na formulação e fiscalização das políticas públicas. O texto busca pensar motivos e consequências desta interrupção da relação dos povos e comunidades tradicionais com o aparato estatal. Por Marcius Coutinho, doutorando em Ciência Política da Unicamp e membro do Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC).


A participação institucionalizada do grupo iniciou-se no ano de 2004 com a criação da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades que teve a tarefa de formular políticas e estabelecer prioridades de ações e programas, além de ter sido um importante espaço de debate que subsidiou a criação da política nacional específica para o grupo.

Assim, por meio do decreto Nº 6.040 de julho de 2007 foi instituída a Politica Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais que representou uma vitória política resultante do acúmulo de forças dos diversos segmentos e seus movimentos sociais ao longo das décadas anteriores. O decreto previa que à Comissão Nacional para Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais caberia a coordenação e acompanhamento das politicas, constituindo-se então em um marco fundamental de criação de espaços de participação do grupo.

A categoria Povos e Comunidades Tradicionais é composta de diversos segmentos, quais sejam, quilombolas, indígenas, ribeirinhos, fundo de pasto, geraizeiros, pantaneiros, faxinalenses, comunidades de matriz africana, quebradeira de coco babaçu, entre outros. Em comum, estes segmentos mantêm vínculos ancestrais com seus territórios e praticam formas de transformação da natureza historicamente diversas, mas que conformam práticas culturais e sociais que estão em constante processo de readaptação e atualização de seus modos de vida.

Algumas estimativas apontam que os povos e comunidades tradicionais ocupam aproximadamente 25% do território brasileiro e tem população próxima de 5 milhões de pessoas[i], que contribuem para a preservação de grandes extensões de áreas de vegetação nativa.

Por meio do Decreto Nº 8750 de 9 de maio de 2016 foi criado o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e que deu posse aos seus primeiros conselheiros em setembro de 2018, somente dois anos depois da sua criação. Neste mesmo ato foi revogado o decreto de 2006 que regulamentou o funcionamento da Comissão Nacional. O CNPCT representa outro episódio de vitória política do grupo e é um órgão colegiado consultivo e deliberativo de acompanhamento e fiscalização de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. A composição do Conselho é formada por 44 membros titulares, sendo 29 representantes dos diversos segmentos que compõem a categoria, mais 15 representantes da administração federal, entre eles, Ministério do Desenvolvimento Social (extinto), Ministério do Meio Ambiente, ICMBio e ministérios da Justiça, Educação, Saúde.

Com a extinção do CNPCT fecha-se o espaço institucionalizado de vital importância para a participação social, bem como inviabiliza ações e programas que correspondem aos pleitos e necessidades dos diversos segmentos. Podemos identificar agentes e setores interessados no cerceamento deste espaço para o grupo e apontamos a seguir três consequências mais diretas e que merecem ser mencionadas.

Pressão sobre territórios e retrocesso na regularização fundiária

No dia 14 de agosto de 2018 foi enviado à Presidência da República pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) o Ofício Nº 239/2018[ii]. O documento assinado conjuntamente com a Frente Parlamentar do Agronegócio, presidida à época pela atual Ministra da Agricultura, pedia a “imediata” revogação do Decreto Nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 que instituiu a PNPCT.

A justificativa era a de usurpação de competência do legislativo, dado que o decreto não instituiu um “parâmetro objetivo” para o acolhimento do critério de “auto-atribuição” e para o que seriam “territórios tradicionais”, causando perda de terras dos proprietários rurais. O ofício foi também solicitava a revogação imediata do dispositivo e a suspensão de todos os processos de demarcação baseados no Decreto Nº 6.040.

Latifundiários, juntamente com grileiros, madeireiros ilegais e empreendimentos que exigem licenciamento ambiental se constituem em principais fontes de pressão sobre os territórios dos povos e comunidades tradicionais no país. A transferência da competência em conduzir os processos de regularização fundiária para o Ministério da Agricultura contribui de modo decisivo para o aumento de conflitos e assassinatos de lideranças dos povos tradicionais[iii].

Era na Politica Nacional destinada à categoria e coordenada por anos pela Comissão Nacional e, posteriormente pelo Conselho Nacional, que a regularização fundiária se constituía no mais importante eixo de ação e a partir da qual se estruturavam programas nos demais temas relativos às demandas da categoria. Uma das consequências da extinção do CNPCT é impedimento da participação do grupo na formulação e acompanhamento de ações que garantam o acesso à terra aos diversos segmentos.

Meio ambiente em xeque com o desmonte da participação dos PCT

A pressão de agronegócio e dos projetos de infraestrutura sobre as politicas de regularização fundiária para os povos e comunidades tradicionais tem dois efeitos fundamentais: no primeiro, aumenta a insegurança jurídica que não mais garante a posse e domínio dos diversos segmentos aos seus territórios tradicionais, facilitando assim, a expulsão dos grupos e invasão de suas terras para expansão da pecuária e agricultura. O segundo efeito que é consequência direta do primeiro, se refere ao aumento de área desmatada, seja mediante corte ou queimadas, extinguindo qualquer possibilidade de preservação da biodiversidade em grandes extensões de terra.

Os territórios ocupados pelos povos e comunidades tradicionais são tidos como “obstáculos” à expansão do agronegócio, mineração e instalação de projetos de infraestrutura e a disputa pelo controle de suas terras só pode ser vencida, silenciando e extinguindo as políticas de regularização fundiária aos diversos segmentos. Não por acaso, a Secretaria de Assuntos Fundiários, criada este ano e subordinada ao Ministério da Agricultura tem o claro objetivo de favorecer o setor do agronegócio, paralisando a regularização fundiária dos territórios tradicionais e por consequência aumentando o desmatamento.

Ao mesmo tempo, em tais territórios a conservação e uso sustentável dos recursos sempre foi elemento fundamental para a reprodução social, econômica e simbólica da categoria. Vedar a participação dos PCT no acompanhamento e fiscalização da politica nacional, com a extinção do seu Conselho, tem como consequência silenciar e impossibilitar a articulação e pressão ao aparato estatal para a execução de ações e programas voltados para a preservação ambiental nestes mesmos territórios.

Como oportunamente aponta a Coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Francisca da Silva Nascimento[iv]: "as quebradeiras vêm lutando pelo território, porque no território estão a água, o peixe, a floresta. Não é só pela quebra do coco que a gente vive, mas também pela preservação das florestas de babaçu. Lá estão a caça e as sementes que a gente preserva. O território é o que nos dá o sustento."

Efeitos sobre o combate ao racismo, intolerância religiosa e preconceito.

No Art. 2º, inciso XIV do Decreto Nº 8.750 que cria o CNPCT está anotado que compete ao Conselho “articular políticas públicas, programas e ações, promover e realizar ações para combater toda forma de preconceito, intolerância religiosa, sexismo e racismo ambiental", deixando em aberto a possibilidade de parceria com o Conselho Nacional de Políticas de Igualdade Racial. Com a extinção destes canais de interação entre Estado e os povos tradicionais compromete-se de modo decisivo a participação social e as políticas de combate ao racismo, intolerância religiosa e de preconceitos de toda sorte.

O crescente número de casos de ataques violentos às casas de santo[v] pode ser lido como resultado do retrocesso que o país experimenta nas politicas de combate à discriminação racial e religiosa e que tem nas comunidades tradicionais de matriz africana um dos principais alvos.

Desafios e Lutas dos Povos e Comunidades Tradicionais

A resposta política dos Povos e Comunidades Tradicionais ao cerceamento da participação vem se manifestando em duas frentes importantes para a resistência: institucionalmente em articulação com o MPF e parlamentares como na audiência pública realizada em março deste ano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM). Além disso, representantes da categoria participam do Grupo Temático de Povos e Comunidades Tradicionais no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) que se constitui em estratégico refúgio para a articulação política do grupo.

A outra frente de luta política tem sido a realização de encontros, seminários e atividades de articulação com os movimentos sociais da categoria, como no Encontro dos Povos do Cerrado e o Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais que será realizado em setembro deste ano. Nesses encontros são pensadas as estratégias de luta para o enfrentamento dos retrocessos e fortalecem a organização para a ação.

Com a edição do Decreto Nº 9.759 pelo atual presidente da república são extintas estas e outras instâncias de participação social, sendo revogado também o Decreto nº 8.243 de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social – PNPS. No caso específico dos Povos e Comunidades Tradicionais o fechamento da participação tem entre outras, as consequências que aqui listamos. Mas também interrompe um longo processo de organização dos movimentos sociais dos diversos segmentos e impõe maiores obstáculos na trajetória de construção de espaço de participação institucionalizada que tem na criação do Conselho Nacional a sua mais recente e potente expressão.

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Para saber mais, indicamos alguns textos que podem ajudar na compreensão da trajetória de articulação política dos PCTs, bem como de sua interação com o Estado:

- Saindo da invisibilidade: a política nacional de povos e comunidades tradicionais

http://portalypade.mma.gov.br/publicacoes/category/70-povos-e-comunidades-tradicionais#

- Quem são as populações tradicionais?

http://portalypade.mma.gov.br/publicacoes/category/70-povos-e-comunidades-tradicionais#

- Direitos dos povos e comunidades tradicionais

https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2014/04/Cartilha-Povos-tradicionais.pdf

- Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade.

http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie322empdf.pdf

- Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais

https://rbeur.anpur.org.br/rbeur/article/view/102/86




[i] https://oglobo.globo.com/brasil/povos-tradicionais-ameacados-por-bancada-ruralista-tem-conselho-nacional-abandonado-pelo-governo-23005307

[ii] http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/nota-tecnica-decreto-6040

[iii] https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/conflitos-no-campo/4729-falta-de-reconhecimento-e-demarcacao-dos-territorios-tradicionais-tem-resultado-no-aumento-da-violencia-denunciam-liderancas

[iv] https://www.miqcb.org/single-post/2019/05/15/Pela-recria%C3%A7%C3%A3o-do-Conselho-Nacional-de-Povos-e-Comunidades-Tradicionais

[v] https://portal.aprendiz.uol.com.br/2019/07/17/terreiros-sao-alvo-de-intolerancia-religiosa-e-racismo-brasil/

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